2010/03/07

Reflexão sobre o filme "Precious"

Acabei de chegar do cinema. Fui ver o “Precious”. Ainda não sei bem o que dizer e como o fazer. Na minha memória cinéfila há poucos filmes que me deixaram com um nó difícil de desfazer e este foi um deles. É, indiscutivelmente, para mim, um filme que deve ser visto em grupo e depois debatido.

Esta minha reflexão padece, por isso, dessa falta de distanciamento e quiçá, de uma segunda ou talvez terceira visualização. Mas a necessidade de me libertar dele, leva-me a dizer já o que penso, qual catarse purificadora através do fogo da emoção.

A uma primeira parte onde a estória se vai desenrolando sem nos criar grandes solavancos, segue-se uma segunda onde o sobressalto é quase permanente.

A uma primeira parte onde essencialmente há cenas de interior, na casa e na escola, sendo que as da casa são pautadas por campos de luzes indirectas, sem incidência sobre os personagens que ficam quase e sempre na penumbra ou numa obscura iluminação, segue-se uma segunda parte onde os campos de luzes são mais claros, com filmagens em interiores e exteriores com boa iluminação.

A uma primeira parte onde quase não há discurso da protagonista, que fala por monossílabos ou pequenas fases, segue-se uma segunda onde esse discurso se vai desprendendo, desenvolvendo e tendo conteúdo.

A uma primeira parte que, talvez pelo tipo de iluminação e tipo de discurso da protagonista, os actos relatados não passam, para nós espectadores, disso mesmo, de meros factos que pela descritiva narrativa não nos chamando à acção, segue-se uma segunda onde, através do assumir de protagonismo da protagonista (passo a redundância) e ao aparecimento de campos de iluminação bem definidos, nos leva para a acção, apelando ao nosso exame crítico e interventivo para o que se está passar.

A uma primeira parte caracterizada por um discurso racista (o que é que a puta dessa branca vem fazer a minha casa), segue-se uma segunda onde o discurso de unidade de racial de Martin Luther King (I have a dream) ressoa, situação esta, aliás, obtida também através da própria comunidade educativa, ela racialmente plural.

A uma primeira parte onde predomina a desordem de uma escola com turmas com bastantes alunos, segue-se uma segunda de sucesso de um projecto educativo alternativo com meia dúzia de alunos.

A uma primeira parte de campos de focagem são fixos (apesar de alguns travellings), segue-se uma segunda onde, nas intervenções mais tensas, o cameraman faz movimentos bruscos horizontais e verticais, como se os nosso próprios olhos não aguentassem manter-se fixos na personagem que está a dizer o se texto e tivessem momentaneamente de se desviar à procura de socorro.

Enquanto a protagonista não assume as dores de alma e de corpo das violências que lhe foram infligidas, nós não assumimos esse seu mal, acompanhamo-lo como meros espectadores, somos até complacentes com algum mal que lhe é infligido, em razão do seu comportamento socialmente desviante (roubar a comida no restaurante e o processo pessoal na segurança social e agredir miúdos do bairro e da escola), ao facto dela ser feia e de não reagir contra o modo como a mão a trata.

Mas quando ela verbaliza: para mim o amor é a violência, a violação, o dizerem que sou gorda e que não sei fazer nada, o trazerem-me a morte... Aí sim... aí sentimos a dor dela. Aí opera-se a ruptura com o passado através da assumpção crítica do mal que lhe tinham feito.

Até esse momento fomos quase cúmplices da mãe, e por isso temos uma reacção profundamente adversa às explicações que ela dá. Causam-nos nojo. No fundo é a nossa culpa a defender-nos, a dizer que a culpa é só dela, mas a verdade é que nós fomos testemunhas, também, dessa violência e mais ou menos aceitamo-la como fazendo parte do enredo. Não nos mexeu a barriga. Não nos fez sair da sala de cinema. Quando a mãe começa a falar com a assistente social, aí queremos assistir a tudo (embora, por medo e sentimento de culpa, fugindo-nos os olhos) para sermos juízes e a podermos condenar, expiando assim os nossos pecados. Sobre este momento da narrativa é interessante realçar o facto de ter havido no filme uma cena onde se indicia a existência de violência sexual da própria mãe sobre a filha, mas a final, aquando daquela entrevista, esse facto não foi debatido, daí se podendo concluir que a filha o não terá revelado. Porquê? Isso não sei explicar.

A escolha de actores que não são estrelas de hollywood, sendo que a protagonista é mesmo feia e a mãe não lhe fica atrás. A escolha na origem racial dos personagens: negros e emigrantes, de bairros periféricos de NY: Harlem e Bronx. Tudo isto cria uma envolvência mais próxima de nós, simples mortais.

Para mim, todos os bons filmes têm uma frase que os caracteriza. Neste é a seguinte: uma caminha inicia-se com um primeiro passo. A estória contada é a de um percurso humano de violência cuja libertação se inicia com um passo, o da educação.

Interessante, e também de realçar, é a abordagem preconceituosa de quem não tem quadro de valores, ou melhor, para quem os mesmos estão completamente alterados: a protagonista ao ver a professora a falar e a conviver com uma amiga vê nelas lésbicas, embora depois aceite, preconceituosamente, também, que foram os não homossexuais que lhe trouxeram todos os males do mundo.

A abordagem à problemática do HIV é bastante positiva, não só no que tange à reacção da comunidade que com ela vive, que não a exclui, antes pelo contrário, a incentivou a viver, ao ponto dela afirmar que sabe que vai morrer mas até lá tem de trata dos filhos, de os educar e de lhes dar amor.

Notas finais: ela era mesmo boa a matemática, demonstrando-o no final, nas contas que fez para determinação do salário hora pago às empregadas domésticas. Os americanos, definitivamente, não dão ponto sem nó: neste filme, onde se fazem referências à Oprah, é feito por uma produtora dela, aproveitando-se ela do mesmo para fazer publicidade. Talvez por isso mesmo, até já me não me lembro do conteúdo dos diálogos onde ela é referenciada.

S. Pedre do do Sul, 07/03/2010, João Carlos Gralheiro

Sem comentários: